(Ex)citações em tempos de crise
Em tempos de crise a natureza humana revela-se mais, no que tem de melhor e pior. Os comportamentos, atitudes e discursos negativos predominam, embora existam exemplos positivos que nos ajudam a compreender melhor como melhor podia ser o mundo se fossem partilhados por mais.
A solidariedade dos que menos têm para os que já nada têm é mais praticada por mais gente, porque cresce significativamente o número dos que menos vão tendo e porque a ameaça de poderem ficar sem nada e da solidariedade dos outros poderem precisar reforça este sentimento.
A disponibilidade para resistir às malfeitorias de quem tanto e tão bom prometeu e lutar por uma vida melhor cresce igualmente nestes tempos, apesar das pressões e repressões de todo o género, desde as mais evidentes às mais refinadas, como agora se viu com a Greve Geral, a segunda que juntou as duas centrais sindicais e a maior que se realizou em Portugal.
Entretanto, a consciência política não se desenvolve como a consciência social, como apontam as inúmeras sondagens, que mostram que os portugueses insistem em escolher para governar os que tão mal têm governado o país e que o afundaram nesta crise, que alijam as suas responsabilidades, atirando-os sempre para outros, e persistem em prometer mais do mesmo.
Mas as manifestações negativas da natureza humana sobrepõem-se às positivas. Talvez a principal, porque determina muitas outras, seja a inveja a que mais se manifesta nestes tempos e mais relativamente a quem está mais próximo. A inveja não se manifesta tanto em relação aos que têm muito dinheiro, aos que exercem cargos de muito poder ou aos que têm carreiras brilhantes, porque os consideramos inacessíveis, mas em relação aos que têm um emprego, uma casa, um carro ou exercem um qualquer cargo que consideramos ao nosso alcance.
As incongruências da natureza humana manifestam-se ainda em muitos outros aspectos.
Basta lembrarmo-nos dos “radicais” que afirmaram não fazer greve porque um dia de greve só servia os interesses do governo e dos patrões e que nenhumas consequências teria para os grevistas a não ser perder um dia de salário, pelo que só fariam greve se esta durasse até se alcançarem os seus objectivos.
Basta recordarmo-nos da repetida afirmação de que as forças políticas de esquerda consequente se limitam a exercer o seu papel de oposição mas que não podem ir para o governo, porque não querem e porque não têm alternativas credíveis. É interessante que quem compra esta ideia, permanentemente em promoção ou saldo, não se interrogue nem se incomode com o facto dos partidos “do arco governativo” alternarem no governo, sem nunca apresentarem qualquer alternativa à política que sempre praticaram, com os resultados que vemos e sentimos. Talvez seja porque estes querem o poder a qualquer preço e os outros não.
Basta lembrarmo-nos da forma como foram apreciadas as recentes cimeiras da NATO, desta com a Rússia e dos EUA com a UE, cujos resultados se ficaram por enunciados de boas intenções, mas decorreram “muito bem” e “ordeiramente”, ao ponto de alguém ter sugerido que Portugal desenvolva esta sua vocação de organizador de grandes eventos.
Basta recordarmo-nos da aprovação do OE, que tanta contestação mereceu mas que foi aprovado da forma “democrática” que se viu, com o maior partido da oposição (?) a dar o seu aval ao governo para cumprir os ditames dos senhores do dinheiro. E os portugueses, que reconhecem que este OE vai contribuir para a recessão económica, para mais desemprego, mais desigualdades e mais pobreza, mostram-se disponíveis para recompensar, em próximas eleições, o avalista desta política.
Por tudo isto, não é de admirar que José Sócrates, imediatamente a seguir à aprovação do OE, com o despudor a que nos habituou, a forte convicção na realidade que criou e como mestre da gestão de expectativas, venha garantir que agora é tempo de executar o OE e trabalhar numa agenda para o crescimento e o desemprego, como se as duas coisas fossem compatíveis.
José Lopes Guerreiro - Alvito, 28 de Novembro de 2010